Rua Florada Sem Saída: Travessias
“Pálidas meninas / Sem olhar de pai,/ Ai quem vos
dissera, /Ai quem vos gritara: / – Anjos, debandai! / Mas ninguém vos diz / Nem
ninguém vos dá / Mais que o olhar de pena / Quando desfilais, / Açucenas
murchas, / Procissão de sombras!”
“Flores murchas”, Manuel Bandeira
“Tudo se amaciava na tristeza. (...)
O Menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele,
trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe a alma”.
“As margens da alegria”, João Guimarães
Rosa
Ao se pensar
em como seria uma peça marxista infantil, algumas dúvidas e alguns nós podem
povoar nosso imaginário. Um deles relaciona-se à chance, não tão remota, de uma
peça com essa perspectiva se caracterizar por traços densos, ou, no mínimo, “didatizantes”,
o que provavelmente a tornaria pouco atraente aos olhos do exigente (e, no mais
das vezes, pouco paciente) público infantil, ainda mais no contexto
contemporâneo. Poucos artistas poderiam fazê-lo impunemente. Mas alguns
fizeram. Ou se não fizeram, propiciaram chão fértil que possibilita leituras
que permitem recepções nesse viés. Um esmerado (e ousado) agrupamento de atores
e atrizes – oriundos de companhias e grupos teatrais distintos, porém com
reconhecidas afinidades (teatrais, políticas) – resolveu tomar para si esse
desafio, cujo resultado é o belíssimo Rua
Florada Sem Saída.
A peça traz à
cena uma nostálgica rua onde moram crianças – e, diga-se de passagem, um dos
personagens é realmente uma criança – que revelam aos espectadores suas
brincadeiras e desentendimentos, seus cacoetes e manias, seus medos e anseios. Cada
qual com seus dramas particulares, todos crescem juntos e atravessam fases que
vão do embaraço ao triunfo, do cômico ao triste, da farra ao enterro (simbólico,
e, talvez por isso, ainda mais potente que um naturalista). A descoberta das
diferenças, das divergências; as ausências e indagações; o primeiro sutiã, o
primeiro beijo, a morte. A bonita figura do florescer da árvore e das crianças
conduz o espectador ao longo de toda a peça. O grande e o pequeno.
O mote da peça,
que inicia com a reunião dessas crianças pelo convívio e ocupação do mesmo
espaço físico – a rua, em oposição a casa, ou, alusivamente o público versus o
privado –, é justamente a árvore que plantam juntos em um terreno baldio,
batizada carinhosamente de Florinda. O seu crescimento é acompanhado de perto
pelos pequenos, que até festa de aniversário para ela fazem. Dialeticamente, é
ela, a árvore, que acompanha totemicamente as etapas de desenvolvimento das
crianças, mas até o momento em que lhe é permitido pelas circunstâncias
externas, o que nos traz a aporia: a impossibilidade da permanência (ou o
esmorecimento) de árvores, valores, lutas e afins, mediante o contexto
histórico fundamentado no capital, aponta para onde? Que horizonte é possível
vislumbrar, tanto numa perspectiva infantil quanto adulta? Se a resposta for a
barbárie, fazemos frente (ou front) a
isso?
Rua Florada Sem Saída demarca a tênue
linha entre ilusão e realidade, o que, em certos momentos pode ser
constrangedor e indigesto, mais para os pais e mães, indefesos na plateia e
impotentes fora dela, que para seus filhos. O título da peça, os rumos da
trama, os becos e encaminhamentos são indícios refinadamente diretos de um
espetáculo e de um conjunto de artistas que não escondem a que vieram. Em meio
à boa música, cenas que conduzem tanto para identificações quanto para
distanciamentos (“será que ela [a babá] gostaria de mim mesmo se não ganhasse
dinheiro?”; “tudo que vê, quer”; lanchinhos de personagens mercadológicos; quem
pode ou não entrar no cinema; quem pode ou não virar top model; reprodução e
reificação), somos constantemente confrontados com o que somos e com aquilo que
gostaríamos de ser. O problema é o abismo (e, talvez, a falta de verve). Mas o
questionamento fica para os adultos, que assistem ora emocionados, ora atônitos,
ao desenrolar das ações, ao passo que, para as crianças, permanece – a bonita,
e poeticamente forte – metáfora da travessia.
Mei
Hua Soares